No
dia seguinte ao que a TV anunciou o fato pelo Jornal
Nacional, repórteres de todos os cantos do
país invadiram Muiúna. O pequeno município
que se localizava em um vale cercado de montanhas,
onde havia apenas duas ruas, virou um turbilhão.
A cidade não tinha estrutura para abrigar
tanta gente. Os moradores quase nem utilizavam dinheiro
para seus negócios. Trocavam entre si a farinha
por alguma rara fruta, roupas pouco aproveitáveis,
por mel de abelhas, enfim...só havia a venda
do seu Euclides, para adquirir sal, um ou outro
raro enlatado. Na verdade, a venda vivia mais às
moscas, pois a pobreza era tamanha, que quando conseguiam
algo para comer era uma festa. Os vizinhos se reuniam
e dividiam, pois se havia uma coisa que imperava
naquela terra onde reinava a fome, era a solidariedade.
Ali não chegavam nem jornais nem revistas
e as poucas notícias que circulavam, vinham
na base do “ouvi dizer, “ parece que
foi...” “contaram...” Não
havia nem cinema nem teatro, apenas uma escola onde
uma professora, que cursara até a quarta
série, ensinava às crianças
o pouco que sabia. O único som além
da viola de Zé Tramela era o do carro de
boi gemendo nas duas únicas ruas. De resto,
era um povo magro, pálido, raquítico,
e quase sempre triste.
Com o nascimento dos filhos de Dasdores, Muiúna
virou um pandemônio. Pela primeira vez os
moradores viram minissaia, bermudas, notebook, MP6
e Ipod.
“Onde encontrar pão?” perguntavam-se
os curiosos. Tem não, moço, aqui cada
um faz em casa o seu. Mas não é possível,
como é que o editor me manda pra um buraco
desses?
No dia seguinte, acabou-se o estoque de analgésicos
da farmácia do seu Joaquim. As poucas vacas
do seu Olibiano foram insuficientes para alimentar
aquela legião de repórteres e de curiosos.
Gente que para lá viajara a fim de ver os
trigêmeos sem boca.
Em frente às portas, as mulheres comentavam
cochichando o que acontecera:
-Será que Dasdores botou chave nos seios?
Mãe disse que não pode. Que se puser
o menino nasce com o lábio cortado no meio...
-Sei não...Acho que é recado de Deus.
Os mais velhos, antigos moradores de Muiúna,
comentavam que aquilo era arte do demo, ou quem
sabe uma lição de Deus. Teria sido
Muiúna escolhida para o Juízo Final?
A cidade não contava sequer com uma igreja.
Nos finais de semana, se juntavam na praça,
em torno do seu Isidoro, o sapateiro, para que ele
lesse passagens da Bíblia. Aquela era sua
missa, seu culto, sua sessão religiosa. Dela
não participavam alguns incréus que
havia na cidade. Debochados, provocavam:
-Cadê teu Deus? A gente tem água? Tem
ônibus? Tem leite pras criança? Algum
prefeito, algum deputado veio aqui? – e riam...
Naquela tarde em que a noticia se espalhou, formou-se
um grupo na praça em torno de seu Isidoro
para pedir que lesse o livro do Apocalipse. Ouviam
em silêncio. Pediam que ele grifasse algumas
partes do texto, interrompiam a leitura para comentar
algumas passagens, encontravam aqui e ali o que
eles consideravam semelhanças com a vida
que viviam.
O sapateiro, provavelmente o morador mais velho
da cidade, e que vivia lendo, tentava entender,
e ao mesmo tempo explicar aos mais íntimos,
sua hipótese sobre o nascimento dos trigêmeos
sem bocas. Ele conhecera o avô de Dasdores,
o pai e o bisavô de Dasdores. Gente que vivera
miseravelmente. Todos vítimas de tuberculose,
de anemia...Mais magros que o gado que morria pelos
quintais de terra rachada. Contudo, se algum curioso
se aproximava, ele disfarçava e encerrava
o assunto.
Filas e mais filas de gente das mais diversas partes
do país e até do estrangeiro, se aglomeravam,
para ver as três crianças que Dasdores
e o marido expunham nas escadarias da igreja.
Às perguntas dos repórteres, cientistas
e curiosos, eles respondiam apenas com os olhos,
deixando todos sem jeito.
Uma semana depois daquele rebuliço, chegou
a notícia: outra mulher dera a luz a mais
uma criança sem boca. E nos quinze dias seguintes,
dezenas e dezenas de crianças nasceram na
cidade e segundo o povo de fora que estava em Muiúna,
em outros municípios vizinhos estava acontecendo
a mesma coisa.
Cientistas estudavam a água, o solo, a alimentação
dos habitantes, mas não conseguiam explicar
o porquê do fato, já que havia anos
os hábitos eram sempre os mesmos.
Em pouco tempo, com a invasão que a cidade
sofreu, instalaram bares, farmácias, armazéns
e açougues. Locais frequentados pelos que
vinham de fora, pois os moradores de Muiúna
continuavam comendo o pouco que conseguiam, e não
tinham dinheiro para gastar naqueles locais.
A cidade virou um inferno. Vieram vendedores ambulantes,
criaram filas de atendimento, e depois de alguns
meses o nascimento de crianças sem bocas
deixou de ser novidade. Elas eram alimentadas com
soro nas veias em um posto médico que o governo
mandou instalar, medida bem mais econômica.
Assim, Muiúna não seria responsável
pela crise que se avizinhava e tudo corria normalmente.
Os moradores responderam muitas perguntas, mas nada
ficou esclarecido.
Um dia, enfurecido com tantas perguntas, tantos
questionários, tantas pesquisas, o sapateiro
gritou para os que o cercavam em busca de respostas:
-Agora – dizia ele – depois de tudo
que nos fizeram, do abandono a que nos relegaram,
vocês não sabem por que nossas crianças
nascem sem bocas? Precisam fazer pesquisas, precisam
de cientistas??? Que se fodam! QUE SE FODAM!
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