Apocalipse no Sertão.
por Risomar Fasanaro * | 07-03-09
 
No dia seguinte ao que a TV anunciou o fato pelo Jornal Nacional, repórteres de todos os cantos do país invadiram Muiúna. O pequeno município que se localizava em um vale cercado de montanhas, onde havia apenas duas ruas, virou um turbilhão.

A cidade não tinha estrutura para abrigar tanta gente. Os moradores quase nem utilizavam dinheiro para seus negócios. Trocavam entre si a farinha por alguma rara fruta, roupas pouco aproveitáveis, por mel de abelhas, enfim...só havia a venda do seu Euclides, para adquirir sal, um ou outro raro enlatado. Na verdade, a venda vivia mais às moscas, pois a pobreza era tamanha, que quando conseguiam algo para comer era uma festa. Os vizinhos se reuniam e dividiam, pois se havia uma coisa que imperava naquela terra onde reinava a fome, era a solidariedade.

Ali não chegavam nem jornais nem revistas e as poucas notícias que circulavam, vinham na base do “ouvi dizer, “ parece que foi...” “contaram...” Não havia nem cinema nem teatro, apenas uma escola onde uma professora, que cursara até a quarta série, ensinava às crianças o pouco que sabia. O único som além da viola de Zé Tramela era o do carro de boi gemendo nas duas únicas ruas. De resto, era um povo magro, pálido, raquítico, e quase sempre triste.

Com o nascimento dos filhos de Dasdores, Muiúna virou um pandemônio. Pela primeira vez os moradores viram minissaia, bermudas, notebook, MP6 e Ipod.

“Onde encontrar pão?” perguntavam-se os curiosos. Tem não, moço, aqui cada um faz em casa o seu. Mas não é possível, como é que o editor me manda pra um buraco desses?

No dia seguinte, acabou-se o estoque de analgésicos da farmácia do seu Joaquim. As poucas vacas do seu Olibiano foram insuficientes para alimentar aquela legião de repórteres e de curiosos. Gente que para lá viajara a fim de ver os trigêmeos sem boca.

Em frente às portas, as mulheres comentavam cochichando o que acontecera:
-Será que Dasdores botou chave nos seios? Mãe disse que não pode. Que se puser o menino nasce com o lábio cortado no meio...
-Sei não...Acho que é recado de Deus.

Os mais velhos, antigos moradores de Muiúna, comentavam que aquilo era arte do demo, ou quem sabe uma lição de Deus. Teria sido Muiúna escolhida para o Juízo Final? A cidade não contava sequer com uma igreja. Nos finais de semana, se juntavam na praça, em torno do seu Isidoro, o sapateiro, para que ele lesse passagens da Bíblia. Aquela era sua missa, seu culto, sua sessão religiosa. Dela não participavam alguns incréus que havia na cidade. Debochados, provocavam:
-Cadê teu Deus? A gente tem água? Tem ônibus? Tem leite pras criança? Algum prefeito, algum deputado veio aqui? – e riam...

Naquela tarde em que a noticia se espalhou, formou-se um grupo na praça em torno de seu Isidoro para pedir que lesse o livro do Apocalipse. Ouviam em silêncio. Pediam que ele grifasse algumas partes do texto, interrompiam a leitura para comentar algumas passagens, encontravam aqui e ali o que eles consideravam semelhanças com a vida que viviam.

O sapateiro, provavelmente o morador mais velho da cidade, e que vivia lendo, tentava entender, e ao mesmo tempo explicar aos mais íntimos, sua hipótese sobre o nascimento dos trigêmeos sem bocas. Ele conhecera o avô de Dasdores, o pai e o bisavô de Dasdores. Gente que vivera miseravelmente. Todos vítimas de tuberculose, de anemia...Mais magros que o gado que morria pelos quintais de terra rachada. Contudo, se algum curioso se aproximava, ele disfarçava e encerrava o assunto.

Filas e mais filas de gente das mais diversas partes do país e até do estrangeiro, se aglomeravam, para ver as três crianças que Dasdores e o marido expunham nas escadarias da igreja.

Às perguntas dos repórteres, cientistas e curiosos, eles respondiam apenas com os olhos, deixando todos sem jeito.

Uma semana depois daquele rebuliço, chegou a notícia: outra mulher dera a luz a mais uma criança sem boca. E nos quinze dias seguintes, dezenas e dezenas de crianças nasceram na cidade e segundo o povo de fora que estava em Muiúna, em outros municípios vizinhos estava acontecendo a mesma coisa.

Cientistas estudavam a água, o solo, a alimentação dos habitantes, mas não conseguiam explicar o porquê do fato, já que havia anos os hábitos eram sempre os mesmos.

Em pouco tempo, com a invasão que a cidade sofreu, instalaram bares, farmácias, armazéns e açougues. Locais frequentados pelos que vinham de fora, pois os moradores de Muiúna continuavam comendo o pouco que conseguiam, e não tinham dinheiro para gastar naqueles locais.

A cidade virou um inferno. Vieram vendedores ambulantes, criaram filas de atendimento, e depois de alguns meses o nascimento de crianças sem bocas deixou de ser novidade. Elas eram alimentadas com soro nas veias em um posto médico que o governo mandou instalar, medida bem mais econômica. Assim, Muiúna não seria responsável pela crise que se avizinhava e tudo corria normalmente. Os moradores responderam muitas perguntas, mas nada ficou esclarecido.

Um dia, enfurecido com tantas perguntas, tantos questionários, tantas pesquisas, o sapateiro gritou para os que o cercavam em busca de respostas:
-Agora – dizia ele – depois de tudo que nos fizeram, do abandono a que nos relegaram, vocês não sabem por que nossas crianças nascem sem bocas? Precisam fazer pesquisas, precisam de cientistas??? Que se fodam! QUE SE FODAM!

 
(*) Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
 
 

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